cultura

Brincar de verdade


Se você cria e apresenta um universo, bom. . .  Trate de cumprir com o que prometeu. Eles não aceitam meias verdades. 

Ouço passos, vozes e risos. Rapidamente quase todos estão sentados em seus lugares. Nunca imaginei que o teatro infantil fosse se fazer tão presente e tão constante na minha vida artística quando comecei. Lá se vão 10 anos de teatro infantil e 20 anos por essa caminhada artística.

Mas, lá vamos nós novamente. Mais uma estreia. E a mente, essa danada, ainda insiste em se perguntar: "Mas porque foi que eu aceitei escrever e dirigir este espetáculo?" Calma. . . Toda vez sempre existe esse frisson e ao final misteriosamente tudo acaba bem. 

Mas e se for diferente? Será que conseguiremos fazê-lo minimamente aceitável? Para nós e principalmente para eles? 

E se nada funcionar? Se errarmos os tempos, ou trocarmos as palavras? E se dessa vez eu inventei algo que não dialogue com eles, que não faça sentido nenhum?" Bom? Agora não tem mais volta, estão todos aí. 

A energia e agitação de ambos os lados da cortina é enorme.

Obrigado, menino. Que sigamos contando histórias!

Tocou o terceiro sinal. E realmente agora não tem mais volta. Esse, obviamente, não é o primeiro espetáculo que escrevo e dirijo para este público. 

Mas minhas dúvidas e medos em cada estreia de infantil são bem distintas das que ocorrem em um processo criativo de espetáculo para adultos. Fui me apaixonando por esse lugar, pois a honestidade e transparência reinam aqui. Sempre que estou em processo criativo e na estreia em algum projeto que envolva crianças na plateia é outro frio na barriga, tem muita coisa em jogo. 

E é um jogo diferente, não só por ser um público diferente. Mas por a cada espetáculos estarmos diferentes. Se estamos seguro demais, certamente quebraremos a cara, se estivermos em dúvida demais, não convenceremos ninguém. Então como criar um espetáculo novo, produzir sentido, linguagens em tão pequeno e assustador universo? Sendo como eles. O mais honestos, transparentes possível. Deixando sem medos que as conexões unam o que tiver que ser unido. Só assim as cenas, personagens e histórias mais absurdas, geniais e cheias de sentido poderão surgir, encantar e emocionar.

Até pode parecer simples na medida em que se aprende alguns tempos (poderíamos até dizer truques), bem como algumas soluções que quase sempre funcionam.

Atentem aqui para o quase. É o quase que aprendi com elas. Quase isso ou quase aquilo na maioria das vezes não resolve nada. No encontro com as crianças, ou se é verdadeiro ou se é verdadeiro.

Nesse diálogo não é necessário checar a fonte pra dizer o que é fake news. Elas falam que você está sendo fake bem na sua cara. E muitas vezes fazem isso só olhando pra você, e sem dizer uma palavra falam: "Não acreditei. Se quiser brincar, pode tentar outra vez. Mas, brinca de verdade. Vai de novo." E se você tiver coragem, mas coragem mesmo, você brinca de verdade.

Por isso, sigo apaixonado em criar coisas para eles. Pois estas criações são para brincar de verdade. E não tem algo mais maravilhoso na vida que brincar de verdade.

Em processo de montagem para este público, também sempre é necessário que nos arrisquemos mais e mais, que compreendamos que se do risco pode vir a desaprovação, também será do risco que virá a magia e o brilho no olhar, a cara boquiaberta que entrega com sinceridade que ela está ali inteira naquele momento contigo.

Essa troca de experiências, de diálogos de iguais (trate-as assim, ou não desce pro play brincar, nem tenta), é a única garantia de se ter uma plateia atenta para jogar. O restante, risco de funcionar ou não.

Isso motiva, ao menos a mim. Por isso, já começamos espetáculos no clímax e voltamos à história até cairmos em soluções inesperadas.

Por isso, já fizemos espetáculos onde os adultos falaram: "não sei como eles acompanham, porque é muita informação, é como se tudo fosse como um quebra cabeça doido". E era, mas era um quebra cabeça pra eles. Eles entenderam, porque foi feito para eles e com eles.

E podem ter certeza, eles são bem mais espertos do que nós.

A prova disso? Bem simples. Ou você brinca de verdade ou não brinca. E isso é pra tudo na vida (Ouviram adultos?)

Obrigado crianças, que sigamos por muitos caminhos ainda, tenho muito que aprender com vocês.

Até o próximo encontro.

P.S. Obrigado pelos olhares carinhosos em cada espetáculo. E pelas palavras gentis que sempre me deixam encabulado e boquiaberto de tão feliz.

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